ENTREVISTAS

ENTREVISTA COM ELIANE POTIGUARA para tese de doutorado de Daniel Munduruku
Realizada em 09.10. 2009 em Cuiabá
Tempo: 50’33”

Quem é Eliane Potiguara
Eu me chamo Eliane Potiguara,  sou uma pessoa muito preocupada com a evolução da humanidade em primeiro lugar, sempre nesse caminho do respeito pelo outro e pelo próprio autorespeito e gosto de ser identificada sempre como indígena que é a força maior que eu tenho na minha família, que é minha identidade enquanto povo indígena, povo Potiguara de origem indígena potiguara. Sou escritora, professora, formada em letras, literatura e português e educação e caminhado para este mestrado de desenvolvimento comunitário.
Nasci em 29 de setembro de 1950. Apesar de a nossa identidade estar ligada com todo um mito ligado ao nosso estilo de vida, mas em função da colonização potiguara, o povo ali foi colonizado pela igreja católica e justamente o protetor dos potiguaras se comemora no dia 29 de setembro que são Miguel Arcanjo. Eu nasci nesse dia e tem essa coisa não indígena, essa coisa colonizadora que venho trazendo ao longo da minha vida. Eu também considero importante essa outra faceta da minha vida.

Processo educativo
Tudo na minha vida eu não posso dizer que começou comigo. Começou em primeiro lugar com minha família. Eu sou de uma família muito pobre, extremamente pobre, família indígena que sofreu o processo da colonização do algodão na Paraíba no inicio do século XX e por essa razão a família sofreu violência nos seus direitos humanos e sofreu migração e eu sou o resultado disso aí, dessa história toda e eu sou o resultado da historia de vida, de luta de um povo, de uma família potiguara que se afastou literalmente de suas terras, família inteira, pra ter uma sobrevivência. Então se estou viva hoje é graças ao deslocamento compulsório dessa família. Estou viva graças a esta família pobre que, como todos sabem, viveu literalmente nas ruas e o processo social, local no Rio de Janeiro é que deu uma esperança a essa família, de desenvolvimento econômico através de articulações com pessoas que vieram da segunda guerra mundial, pessoas pobres como carvoeiros, bananeiros, então, minha avó se tornou uma grande comerciante de bananas, tinha barraca de bananas e eu pude estudar com estes recursos dela e ela dizia que ela não queria que a neta dela tivesse a mesma vida que suas filhas, seus filhos, suas irmãs, seus pais tiveram. Queria que a neta dela se formasse uma professora.
Eu fiz todo o processo educativo sendo que no primário eu fui alfabetizada dentro de casa depois é que fui a escola, escola primária, depois minha família me apoiou para fazer a escola normal, fiz a escola normal, passei num concurso público, passei pela universidade, passei por todo um processo mesmo e gostava de estudar. Para mim o estudo era uma veia, um canal que me colocava em outras dimensões não aquela que eu vivia na minha casa pobre, em contato com ratazanas, pobreza, baratas, em condições sub-humanas que a gente vivia no gueto indígena, casa de cômodo, situação bastante pobre e éramos extremamente excluídos da sociedade, então, foi ai que começou tudo.

Influência religiosa
Não, não tive nenhuma influência apesar de anos depois minha mãe ter entrado e ficado até o final da vida na grande fraternidade branca, que a fraternidade Rosa Cruz do Brasil. Eu não tenho assim uma influência em cima disso porque foram anos depois, mas não tive assim uma educação religiosa do catolicismo, do protestantismo, nada. Não tive nenhuma influência religiosa nesse sentido. Tive mais filosófico.
Entrada no movimento
Primeiro, eu acho que já estava no Movimento Indígena (MI) desde que nasci. Como era de uma família combatente, guerreira que escapa da morte, foge, tem seu líder assassinado então essa família tentou sobreviver. Segundo, eu tive muita influência da minha avó. Minha avó era uma guerreira muito combativa, mulher analfabeta, indígena bastante consciente de sua condição de mulher, pobre, nordestina e eu ouvi sempre a voz guerreira dessa mulher. Então eu me considero uma pessoa que já vem no MI dentro de casa tendo essa visão. Depois, eu conheci o cantor Taiguara que foi uma grande personalidade artística e política no país que teve uma grande contribuição grande que foi o pai dos meus filhos e ele me deu um incentivo muito grande na parte política enquanto minha avó me dava toda uma essência de vida. E eu fui buscar justamente com o apoio dele - ele me ajudou a pagar minhas passagens, meus cursos - eu viajava, eu pegava o ônibus e ia correr mundo. Nessa época não existia ainda uma categoria MI, um marco como, por exemplo, Mario Juruna, que foi um marco. Depois a União das Nações Indígenas (UNI) que foi outro marco. Antes disso tudo eu já viajava pelo sul do Brasil, pelo amazonas, já conhecia a problemática das mulheres indígenas principalmente das mulheres indígenas que era meu ponto focal porque eu era neta, filha, sobrinha – a maioria da minha família é toda de mulher – fui procurar, fui procurar por opção e por incentivo mesmo dessas minhas tias-avós e nesse processo, voltando para o Rio de Janeiro, militando, ouvindo muitas reuniões que o Taiguara fazia dentro de casa com os políticos, eu fui aprofundando mais minha relação, tentando achar onde estava a nata da situação indígena, da questão indígena, como se poderia trabalhar a questão indígena, como estava esta situação, dos povos indígenas. Mais pra frente eu ouvi falar de Mario Juruna (MJ). Foi meu primeiro momento foi quando eu conheci o MJ na campanha dele pra deputado, antes já tinha ouvido falar de Ailton Krenak (AK), Álvaro Tukano (AT) e essas duas pessoas me deram um apoio muito grande. Por causa deles é que acabei me chamando de Eliane Potiguara (EP). Minha mãe quando os conheceu ficou encantadíssima com eles. Disse: - minha filha você está no caminho certo. Segue. É por aí mesmo. E foi aí que comecei as minhas primeiras articulações com o tal do MI que tinha sede em SP. Eu pegava minha filharada toda pelas mãos e ia pra lá. Todo mundo achava um absurdo porque diziam: - Lá vem essa mulher com um bando de filho atrás. Era muito engraçado isso tudo. E eu ia no sacrifício. Deixava o Taiguara que ia buscar os caminhos dele e eu ia buscar os meus e foi quando minha avó, bem, antes minha avó tinha essa vontade que eu voltasse, buscasse o povo potiguara e foi com o apoio do Taiguara que eu fiz essa volta, eu chamo de volta, apesar de não ter nascido na área potiguara eu considero como uma volta e depois que eu estive com a comunidade indígena e que as pessoas me apoiaram, João Batista Faustino, por exemplo, que foi um grande cacique e grande mentor político na minha cabeça como líder potiguara, ele era vereador, tinha uma consciência muito grande de identidade indígena, território indígena, de terra, de demarcação, era um momento político muito importante na época, 1979, quando a Tagira nasceu. Ela foi batizada nas águas potiguara. A criançada toda, os adolescentes e jovens e velhos agarraram minha filha e não me entregaram mais a criança que ficou rodando a comunidade inteira com aquele carinho todo. Quer dizer, eu me senti em casa. E a partir daí, vendo as demandas dos potiguara eu fui articulando com o vereador, conversando com ele, com o cacique, com as lideranças locais foi quando a gente implementou o primeiro encontro potiguara de luta e resistência que já foi em 1988 pra 1989. Com isso eu já estava acompanhando o MI com AT e AK, MJ nas questões da constituinte eu participei nas discussões em Brasília, participava de algumas reuniões que o CIMI promovia, inclusive fui convidada pelo CIMI para ir a Dourados fazer uma primeira reunião com as mulheres indígenas. Era um movimento muito bom, muitas emoções, nós não tínhamos formação de nada, de estratégia, de gestão todas estas palavras que hoje tem, não tinha internet, não tinha nada. Como adorava escrever acabei criando um jornal. Criamos um jornal que foi de repercussão nacional. Afinal, uma mulher indígena montando um jornal cheio de denúncias sobre violação de direitos humanos dos indígenas, das mulheres e sobre violação de direitos de territorialidade, de terra, demarcação, de policia federal, de conjuntura nacional. A gente falava de tudo nesse jornal e tinha sempre um espacinho pra tal da literatura, dessa literatura mais mágica, mais mítica. Então eu comecei achando que você ter um jornal na mão – e acho que o AK já tinha feito um jornalzinho, um tablóide, não era nem um tablóide, era um jornal pequeno – e acho que também fui influenciada pelo Krenak para esse jornal. Porque também na época o pessoal não dava muita guarida pra mulher indígena, não. O pessoal era um pouquinho machista, vamos dizer a verdade. Então teve que abrir canais, fincar o pé para conseguir alguma coisa e o jornal foi um caminho. Mas eu tive a coragem de lançar uma cartilha de conscientização política chamada TERRA MÃE DO INDIO. Ela não tem uma beleza estrutural, mas ela tinha e tem um conteúdo muito político, muito forte que marcou época e formou mentes dentro da própria comunidade potiguara de jovens que eu conheço e que hoje já são até pais de família que disseram: olha, aquela cartilha A TERRA MAE DO INDIO fez minha cabeça. Como outras lideranças nacionais disseram que tinham lido esta cartilha e que ela tinha aberto a cabeça como a Fernanda Kaingang, por exemplo. Quer dizer, a gente foi trabalhando. Eu tinha apoio de muitas mulheres potiguaras como a Maria de Fátima, a Vilma, Comadre. Tinha muita mulherada. A mulherada tava muito motivada que era uma coisa nova, uma idéia nova. Quer dizer, a minha integração no MI foi com essa vertente. Era uma coisa que nem se comentava a questão de gênero no país. Isso veio depois. A gente já fazia movimento com essa inserção de gênero, qual o papel da mulher na sociedade, na educação dos filhos, na formação da comunidade, na preservação da cultura indígena. A gente já vinha com isso. Por que? Porque já vinha nossas avós, de nossas famílias, de nossas avós, das nossas tias. Eram preocupações anteriores que elas não tiveram oportunidade de se posicionar justo porque havia uma repressão. Se nos tempos atuais a situação da mulher ainda fica aquém, imagina naquela época da nossa vovozinha. Quer dizer, eu vinha com uma força vital muito importante, formação muito visceral, era de pele. Não era formação de escola, de literária, era de pé de ouvido, coisa da família. Então penso que minha primeira formação é a familiar. Eu tenho uma formação muito bonita, muito nobre, que eu muito me honro, muito me orgulho dessa formação que nasceu na família. Essa formação muito guerreira, essas mulheres que mostraram meu caminho para ser um ser feliz. Qual é o meu papel nesse planeta terra e qual minha missão nisso tudo. E veio nessas outras décadas – 1979 - eu venho só mantendo isso e tentando difundir essas idéias e difundir esse processo todo.

Que valores presentes no MI
Eu acredito muito – em primeiro lugar – nesses valores morais, da família. Na relação pai e mãe, filhos. Valores étnicos. Acho que estava numa hora em que as pessoas tinham necessidade de dizer quem eram essas pessoas. A gente passou por um momento muito importante de identidade nacional. Ai veio nesse processo o movimento negro, os outros movimentos, os sem-terra. Acho que fomos felizes porque construímos essa cara. Claro que somos todos iguais, mas porque a gente tem que dizer que é indígena? Porque alguma coisa está nos sufocando. Por que o cigano precisa dizer que é cigano? Porque alguma coisa o está sufocando. Então, a gente passou por um processo de auto-afirmação muito grande, ainda estamos passando. Depois de todas estas décadas ainda estamos passando por isso. Um dia não vai precisar mais. Vamos ser todos iguais. Mas as pessoas são vão respeitar você quando você disser, você se impor. Então, os valores morais – não falo dessa moralidade cristã, falo de princípios, princípios de vida – isso foi muito importante na formação desse primeiro momento histórico, político, filosófico.

Receios, medos
(Pensando por uns segundos)
Eu não tinha medo nenhum. Acho que minha...não sei se era uma irresponsabilidade. Hoje eu penso assim: teria coisas que fiz que não faria hoje. Enfrentar fazendeiros. Por exemplo, minha mãe, junto com meu irmão, esteve dentro do CACO – minha mãe era praticamente analfabeta, mas ela cantava, tinha o poder da arte - e ela se articulou com o movimento do CACO no Rio de Janeiro e acabou sendo perseguida e teve que sair – embora não tenha sido presa – mas eu fico pensando que se minha mãe que não tinha cultura nenhuma – cultura formal – era uma pessoa praticamente iletrada, só fez o primário, estava a frente do movimento de estudantes junto com meu irmão, meu irmão que estudava música na escola nacional de música... Quer dizer, nos éramos pessoas que não temíamos. Justamente pela formação que tinha tido. A gente não tinha medo de nada. Eu não consigo identificar nada agora, no momento dessa entrevista. Possa ser que até o final dessa entrevista eu possa te dizer alguma coisa, mas eu não tinha medo de nada. O que posso dizer é que eu não tinha medo mesmo. Eu estava de peito aberto para enfrentar qualquer coisa. Tanto que eu – minha rebelação foi tanta – que eu passei por problemas políticos sérios na área potiguara. Fui colocada numa lista de pessoas marcadas para morrer, foi anunciada pela TV Globo – uma lista que incluía Caco Barcelos, aquele outro escritor do MT (Rogério) – quer dizer não tinha medo. Estava de peito aberto para qualquer coisa. Eu acho que eu não tinha medo, não.

Preocupações pessoais que motivavam militância
Antes eu tinha viajado para o sul do Brasil – Santa Maria, Bagé, Santo Ângelo, Paraguai – e tinha conhecido muitas comunidades indígenas que estavam vivendo uma carência e um desrespeito muito grande e isso foi o que mexeu comigo justamente porque identificou, me colocou no mesmo lugar da situação que estava vivendo, minha família estava vivendo, sofreu quando passou por esse processo de migração compulsória. Eu me vi também, me vi ali naquele povo guarani, eu via minha família ali. Então eu assumi aquela luta, aquela defesa, como defensora nata e a importância disso pra mim é que parecia que eu estava fazendo justiça ao que aconteceu com minha família. Porque até hoje eu não considero que minha família foi feita justiça com ela. Sei que vai acontecer, mas não sei quando pode acontecer com os povos indígenas do Brasil porque são estas historietas que motivaram essa evolução, esse caminhar dos direitos humanos dos povos indígenas, então nós que fomos estas pessoas sem medo é que deram os primeiros passos. Agora, está certo? Está Errado? A gente não sabe. Não sabe nunca nada.

Visão de futuro
Fui muito influenciada com a política do momento, eu vivi a política do momento, vivi a ditadura militar, vivi todo esse processo; o próprio Taiguara sofreu com este processo – ele era de origem charrua, do Uruguai -, eu estava respirando política o tempo todo. Falava de justiça, igualdade social, a gente estava vivendo um tempo difícil e a gente tinha que caminhar em busca da igualdade. A gente estava vivendo um movimento no planeta pela luta pelos direitos humanos contra o imperialismo. Era uma luta antiimperialista. Minha visão de futuro para esse momento é que a gente queria igualdade social para todas as pessoas, a gente queria que todos os seres iguais. Essa era a mentalidade daquela época, mas era preciso construir isso. A gente era muito romântico, a gente tinha uma visão muito romântica da coisa. Até entrar em partido político, fazer revolução, fazer guerrilha. Mas eu não fiz nada disso. A parte de pegar em armas, nada disso eu fiz. Mas eu hospedei em minha casa alguns guerrilheiros, pessoas inclusive de origem indígena, mas de certa forma a ideologia estava ali e agente estava caminhando naquele processo político e meu objetivo era ver o que todos queriam naquele momento, os universitários. Todos aqueles apaixonados queriam ver a justiça social.

A visão do Movimento Indígena
Todos nos éramos influenciados por este processo porque foi um momento político muito importante porque então estava todo mundo – os camponeses, a liga camponesa que existia na época, os trabalhadores rurais, o proletariado, os sindicatos, os professores, todos estavam motivados para este processo de uma conscientização nacional, uma libertação nacional. Eu vejo que o MI caminhou junto com este processo nacional que na realidade foi um pouco um processo internacional. Claro que cada um teve uma válvula de escape, cada um teve seu momento, uma saída, mas eu vejo que – na conversa com muitas pessoas dos movimentos sociais sejam de Manaus, do interior de Goiás, as mulheres indígenas de Manaus – eu via que elas falavam, que tinham o mesmo discurso que uma pessoa de um sindicato. Diziam que estavam sendo vilipendiadas nos seus direitos, os militares.. elas eram empregadas domésticas de militares que abusavam sexualmente delas, que elas eram mão-de-obra escrava para estas pessoas, para estas famílias burguesas, a maioria delas militares. A gente via que havia uma grande insatisfação do povo brasileiro nesse processo de conquista dos seus direitos humanos. E não existia exercício de direitos nenhum. As pessoas estavam altamente violadas. A gente vinha disso.

Parceiros
Justamente, quando o CIMI, que estava ligada ao PT e o PT era uma facção religiosa, ligada a filosofias religiosas, cristãs e foi um movimento que nasceu no Brasil e é por isso que está até hoje no governo. O PT conseguiu o objetivo, mas não sei se mudou a cara. Ai seria outra discussão que não quero entrar no mérito, mas foi uma grande onda e que a Comissão Pastoral da Terra (CPT) estava ali junto com os povos indígenas. Eu mesma participei de muitas manifestações populares onde estava presente toda a sociedade civil...

Avaliando os parceiros
Eu avalio que estes parceiros foram importante num determinado momento histórico. Mas eles tinham ainda uma grande dificuldade de perceber que a questão indígena era diferente, era que nós tínhamos a nossa terra e tínhamos nossas diferenças étnicas. O indígena brasileiro nessa época era visto mais como um povo generalizado não se dava tanto valor ao processo étnico, etnia a, b ou c, então eu acho que a gente teve um pouco de dificuldade para colocar esse processo para ser mais clarificado e acho que a educação indígena teve seu papel importante e a literatura em seguida para definir com estes parceiros todos – de terra, sindical, agrário, partido político, de sociedade brasileira – eu acho que nós fomos muito felizes em todas as dificuldades com a falta de dinheiro, falta de apoio...fomos muito felizes de fincarmos pé e dizer nós somos diferentes, não somos um movimento que podemos caminhar com o movimento social como parceiros, mas sabendo que temos nossas diferenças e que essas diferenças – eu lamento dizer – com todo avanço político que teve em nosso país essa diferença ainda não foi consagrada oficialmente pelo governo brasileiro, - porque senão hoje a gente teria até um departamento dentro do Seppir (Secretaria Especial de Políticas Públicas para a Igualdade Racial) que contemplasse a povos indígenas. A gente não tem dentro da questão racial, a gente não tem para povos indígenas. Tem para a população negra. A gente não tem pra nós ainda. Por que? E a gente não conseguiu ainda se libertar desse processo paternalista, político, que esse órgão institucional que é a Funai. Parece que está difícil, temos que travar alguns embates, ter alguns desafios para que a gente possa ter essa autodeterminação.

Avaliação do Movimento Indígena
(Pensando alguns momentos)
O MI também foi muito influenciado por facções. Eu vejo que houve muita gente, houve muitas instituições governamentais, instituições acadêmicas, filosofias acadêmicas, ideologias formaram esse inicio de movimento e aos poucos o movimento tem construído uma cara e há de se construir um pensamento indígena brasileiro, a gente ainda não tem, eu que vivi com esse movimento desde o inicio, considero que ainda não tem cara ainda não. Tem que trabalhar muito. Quem sabe possa ser através da literatura indígena, talvez seja essa até uma estratégia que a gente possa estar usando. A leitura chega àquela criança, aquele adolescente. Numa reunião de lideres políticos as pessoas já estão de cabeça feita, mas as outras mentes podem pipocar por aí e pensar: poxa o movimento teve esse lado, de muitas influencias, a gente não conseguiu criar um pensamento nacional indígena, nós temos muitas influência, ainda há muito paternalismo... a gente está em fase de construção do movimento indígena. Eu digo sempre que o MI ainda não é um MI. O MI está em fase de construção enquanto vários movimentos justamente para contemplar as diferenças étnicas, (haja visto as 288 nações indígenas), eu acredito ser muito difícil ter esse movimento nacional, nos temos vários movimentos, inclusive a literatura indígena ela é um movimento . Somos nós, os indígenas em movimento.


Caráter Educativo do Movimento Indígena
Eu vi o MI como auto educativo. Além de educar a si mesmo ele tinha finalidade de conscientização. A palavra chave era conscientização. Nos pequenos encontros que fazia, participava, sempre tinha sim um momento de crescimento pessoal - tanto que tudo isso desembocou numa necessidade de formular uma nova educação indígena no Brasil -, vejo que hoje temos a Educação Diferenciada, os professores já são indígenas, o corpo docente e discente já são formados por indígenas, hoje as pessoas exigem que todos sejam indígenas, necessitam, precisam, ocupam esse espaço. Alias, não é nem exigir. Elas querem e estão são protagonistas e entram pra serem as protagonistas neste processo de educação. Então acredito que todo esse processo de movimento de luta, de conscientização, isso tudo desembocou especificamente falando, nessa nova educação indígena, desembocando também na literatura que temos hoje, nessa necessidade que temos nossa forma de escrever, vontade de manifestar. Esse foi um momento novo muito bonito. Eu não tenho arrependimento de nada do que vivi, consigo ver as etapas, vislumbrar as etapas. Claro que a gente fez muita coisa errada, a gente não sabia, na época não existia ninguém para orientar, era uma coisa de dentro, espontânea, apesar de que era espontâneo no nosso coração e já tendo pessoas querendo abraçar nossa espontaneidade – eu não posso deixar de dizer isso -, tanto que muitas tendências aconteceram de esse neste movimento tem uma cara a, cara b justamente por causa desse grupo que abraçava esta espontaneidade das pessoas indígenas. Nos éramos muito espontâneos realmente.

Avaliando sua própria participação
Minha grande contribuição foi ser muito panfletária, ideológica, teimosa, sem medo. Determinada. Senti-me uma pessoa assim mesmo que as vezes tivesse que chorar, derramar lagrimas e sofrer, mas eu tinha uma força interior muito grande, algo muito forte dentro de mim, realmente algo muito forte que fugia a minha própria condição humana. Esse impulso essa força interior que tinha que eu chamo de guerreira foi muito importante para mim e  para várias pessoas também do próprio movimento que também tinham isso.

Resultados de atuação
Eu acredito que nos hoje temos uma educação diferenciada, temos uma cara de movimento, cara literária, de certa forma demos um pontapé inicial nesses panfletos que a gente fazia, nestes poemas-posters que a gente espalhava por aí, Oração pela Libertação da América Latina, Atos de Amor entre os povos, O que faço com minha cara de índia...falo como uma pessoa sozinha, como realização pessoal. Então a minha contribuição foi mesmo de criar polêmica. Eu sempre joguei uma gota de nitroglicerina nos debates e nos espaços e deixava acontecer e depois saia fora e depois tomava as porradas por aquilo, porque vinha de qualquer forma. Das próprias pessoas que estavam acima ou das pessoas que estavam em volta, mas me sinto assim uma pessoa que conseguiu dar um pontapé inicial nessa discussão de gênero - que não se falava em gênero - depois as instituições internacionais só apoiavam os projetos das organizações sociais indigenistas, só apoiavam projetos se essas instituições tivessem um recorte de gênero e a gente é que falava disso, a gente nem sabia o que era isso, mas a gente já falava de gênero, da participação da mulher, da participação da criança do velho, da viúva, a gente tinha essa preocupação de que essas pessoas tivessem voz. Na parte literária também me considero uma precursora por ter trazido os primeiros textos e jogado no território nacional e deixar ver o que acontecia com este trabalho.


Valeu a pena?
Valeu. Claro que valeu a pena. Estou aqui. Sou um ser humano feliz. Talvez se eu tivesse em casa vendo televisão, cuidando de limpeza de casa – faço isso também – mas eu não seria uma pessoa feliz e chegar uma conclusão que dei uma pequena contribuição nesse processo, nessa construção,  se não tivesse tomado parte desse exercício de direitos dos povos indígenas.

Você é otimista?
Sou otimista... (pensando alto) deixa eu ver se sou otimista.. A maioria das vezes sou otimista. Apesar de que as vezes tenho algumas coisas negativas, mas busco pensar positivamente, procuro pensar sempre positivo no planeta terra. Eu sou uma pessoa as vezes triste. As vezes me entristeço pelas coisas, pela não capacidade de realização de determinadas coisas, mas também por não ter tido acesso, por não ter dado continuidade aos meus estudos , porque na realidade queria ter sido uma antropóloga e não consegui porque me casei, tive filhos e não pude estudar, mas agora com 60 anos que vou fazer estou buscando fazer este mestrado e retomar alguma coisa que não consegui de forma mais acadêmica, cientifica. Fiz as coisas ao longo da vida muito do lado do romantismo, do lado do espontaneísmo, na força de vontade, da coisa que falo da guerreira que vive dentro de nós influenciado pela família, eu sou otimista sim, eu tenho uma postura otimista pelo planeta terra e eu ainda tenho muitas coisas para fazer, tenho muitas coisas aqui ainda.

Quero acrescentar que tive a grande alegria e felicidade de ter participado da elaboração da declaração universal dos direitos indígenas em sete sessões seguidas em Genebra e que esta declaração está aí como uma conquista nossa na área jurídica; a convenção 169 também que eu também tive a participação neste processo e me orgulho de ter participado nesta construção jurídica para o futuro dos povos indígenas do Brasil; orgulho-me de participar do movimento intelectual na construção de melhores condições de vida, de garantia destes nossos conhecimentos ancestrais, o que são esses conhecimentos? Como vamos conservar isso? Como vamos trabalhar estes conhecimentos? Como vamos levar adiante? Então, me orgulho de participar disso aí.

Mensagem aos jovens
Minha mensagem aos jovens é que respeitem os mais velhos porque os jovens são abusados pra caramba, como eu era, então o jovem precisa ouvir um pouco mais – ser combativo, ser resistente – mas ouvir um pouco mais e respeitar um pouco mais as pessoas mais velhas. Acho que não está havendo este respeito principalmente dentro do movimento indígena, acho que o pessoal precisa se ligar nisso aí.