ENSAIOS SOBRE ELIANE POTIGUARA

As  impossíveis  renúncias de Agostinho Neto e Eliane Potiguara


LEONEL COSME
Escritor e Ensaísta de Portugal



          Tenho de começar por dizer que a minha memória não regista,  depois da Renúncia Impossível, do maior poeta negro angolano  Agostinho Neto,  outro livro tão perturbador como é  "Metade cara, metade máscara", da escritora e poeta índia brasileira Eliane Potiguara, a cuja apresentação assisti,  na cidade do Porto,  a 13 de Novembro de 2010, em Portugal.
          Perturbador, a todos os títulos, mas logo pelas epígrafes escolhidas para introduzir a sua mensagem de autora índia vinda do Brasil, face a uma audiência expectante porque, na  generalidade,  distanciada, física e culturalmente,  de uma mensageira talvez só (mal) imaginada no recôndito das selvas brasileiras, onde, segundo raras notícias veiculadas pela comunicação social,  os fazendeiros  latifundiários continuam a  não deixar os nativos em paz. na terra-mãe que lhes pertence desde a Criação.
Começando por uma significativa advertência recolhida do poema O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro/Fernando Pessoa,
  Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.
adianta:
            No dia que eu conseguir abrir as páginas de minh’alma e contar essas linhas de meu inconsciente coletivo – com alegrias ou dores, com prazeres ou desprazeres, com amores ou ódios, no céu ou na terra – aí sim, aí sim, vou soltar a minha voz num grito estrangulado, sufocado há cinco séculos. Quinhentos anos, de pretenso reconhecimento de nossa cidadania, não pagam o sangue derramado pelas bisavós, avós, mães e filhas indígenas deste país. Este dia certamente chegará,  mesmo que eu esteja em outros planos.
Penso: que outra voz igual, vinda de África, ressoando a uma impossível renúncia e à crença numa sagrada esperança,  ecoava na minha memória? 
Ah!
Faça-se luz no meu espírito
LUZ!
Calem-se as frases loucas
desta renúncia impossível.
Eu-todos nunca me negarei
nunca coincidirei com o nada
não me deitarei nunca debaixo dos comboios.
………………………………………………….
Sou um valor positivo
da Humanidade
e não abdico,
nunca abdicarei!

Seguirei com os homens livres
o meu caminho
para a Liberdade e para a Vida.

A minha memória ia direita à voz  de Agostinho Neto, o poeta revolucionário angolano, que depois da Renúncia Impossível escrevera Sagrada Esperança, para transmitir  ao seu o povo a força motora 

Nós  somos
Mussunda amigo
Nós somos!

da mensagem conclusiva:

          Do caos para o reinício do mundo
          para o começo progressivo da vida
          e entrar no concerto harmonioso do universal
         digno e livre
         povo independente com voz igual
        a partir deste amanhecer vital sobre a nossa esperança.

Não é uma voz igual, esta, também épica, a de Eliane Potiguara?

        Nós, povos indígenas
        Queremos brilhar no cenário da História
        Resgatar nossa memória
        E ver os frutos de nosso país, sendo dividido
        Radicalmente
        Entre milhares de aldeados e “desplazados”
        Como nós.        

Ah, a História, lembrando-nos sempre que  começa com o que vem de trás! Faço minhas estas palavras de Graça Graúna, no prefácio:

            Em verso ou em contação de histórias, a visão dos povos indígenas em Potiguara é fruto da somatória de saberes ancestrais e dos chamados tempos modernos. Não é à toa que ela questiona a representação da mulher indígena na sociedade não-índia, mostrando que desde a colonização essa mulher foi e continua sendo tratada com requintes de malícia, discriminação, brutalidade, preconceito. Basta um olhar nas cartas que falam do “Descobrimento” das Américas, ou no antidiálogo de jesuístas para aquilatar a imagem da mulher indígena: pecado em carne e espírito, perversão, encarnação do mal.
           
E em poema, o retrato feito pela própria Eliane é ainda mais trágico:

Que faço com a minha cara de índia?
           
E meu sangue
            E  minha consciência
            E minha luta
            E nossos filhos?

            Brasil, o que faço com a minha cara de índia?

            Não sou violência
            Ou estupro
            Eu sou história
            Eu sou cunhã
            Barriga brasileira
            Ventre sagrado
            Povo brasileiro

            Ventre que gerou
            O povo brasileiro
            Hoje está só…
            A barriga da mãe fecunda
            E os cânticos que outrora cantavam
            Hoje são gritos de guerra
            Contra o massacre imundo.

E regresso a um segundo  prefácio, de Daniel Munduruku:

            Houve um tempo que pertencer a um povo indígena era quase uma maldição. Falava-se destes povos como atrasados, selvagens, inoportunos para o progresso, sem razões e sem convicções. Havia quem falasse que desapareceriam à mercê do capitalismo selvagem, já que não teriam como resistir ao impacto da “civilização”.  Havia, porém, quem ousasse defendê-los, encorajá-los, informá-los sobre o seu real papel dentro da sociedade envolvente. Estes amigos acreditaram na verdade destes povos, acreditaram em sua índole, acreditaram no seu futuro.
           
            Tendo eu vivido quase metade da minha vida, a partir dos dezasseis anos, em Angola, - como o Brasil, país com minorias tidas como “inoportunas para o progresso” – cedo me ocorreram as vozes amigas de escritores e antropólogos, já  falecidos,  como Henrique Abranches, Alfredo Margarido e Ruy Duarte de Carvalho (estes dois últimos tendo lecionado em Universidades brasileiras),  que, sendo portugueses de origem, consagraram a sua vida e obra à defesa dos indígenas angolanos “inoportunos para o progresso” porque  resistindo aos “impactos da civilização e do capitalismo selvagem, dentro e fora da sociedade envolvente”.
            No mesmo contexto sociológico,  não deixarei  de juntar àqueles estudiosos das identidades primigénias angolanas o nome de A.F.Nogueira, que em 1880 deu à estampa um livro básico para o estudo da colonização  de Angola: A RAÇA NEGRA – Sob o ponto de vista da civilização da África – Usos e costumes de alguns povos gentílicos do interior de Moçâmedes – As colónias portuguesas.
               Diga-se que António Francisco Nogueira, de seu nome completo, foi um dos primeiros colonos portugueses, entre duas centenas,  saídos em 1849/50 de Pernambuco, fugindo à Revolução Praieira,  para  o  território namibiano, pouco povoado, do sul de Angola, onde viveu um quarto de século. Etnólogo autodidacta, levava do Brasil uma visão realista que o levou a prever, como inevitável,  a independência dos povos  colonizados. E – surpresa, hoje! – apresentava a independência do Haiti como um paradigma da libertação. No Brasil, ele aprendera o que era visível da escravidão africana, certamente lamentando que os missionários jesuítas  só tivessem investido o seu humanismo na preservação  das almas índias, conferindo-lhes um direito de  cidadania que porém só acabaria por ser exercido, como que silenciosamente, à margem dos colonizadores, no recôndito das florestas.  Zumbi e Palmares viriam por acréscimo…     
            Nogueira  não se deixou iludir pelo “acertos naturais” dos Camurus e Paraguaçus, que já não tinham entusiasmado o clássico Gregório de Matos, - apesar de também ter casado com uma mulher de cor e vivido um ano de desterro em Angola, por ser “Boca do Inferno” - como se calcula partindo  da primeira quadra de um “multirracial” verso oferecido “Aos principais da Bahia chamados os Caramurus”:

            Há cousa como ver um Paiaiá
            Mui prezado de ser Caramuru,
            Descendente de sangue de Tatu,
            Cujo torpe idioma é cobé pá.

            Gilberto Freyre ainda não existia para pregar as virtudes da miscigenação e da multiculturalidade, ele que, no relato da Vida Social no Brasil do Século XIX, já não registara a presença de índios entre os escravos negros amansados ao serviço da Casa-Grande, que vestiam de preto durante meses, em sinal de luto pelos seus ioiôs e iaiás…
            Sempre houve muitos “brasis”, antes e depois de Cabral. Como houve muitas outras “américas”, antes e depois de Colombo, e muitas “áfricas”, antes e depois de Diogo Cão.  E todas consignando, distintamente, a brancos, negros e pardos,  o direito à preservação da identidade primária, uns por meio da posse, outros pela resistência à posse. Também foi, e continua a ser assim, em África, onde o otimismo do académico e então diplomata brasileiro na Nigéria, nos anos 60, Antônio Olinto,   podia ainda levá-lo a escrever, em Brasileiros na África:
  
             Nos meus primeiros tempos de África, em Dacar, Freetown, Acrá, Porto Novo (Daomé) e Lagos, os jovens negros de  Abidjan, lendo sob os postes, eram o signo de uma verdade nova no mundo, de um modo diferente de fazer democracia e buscar o socialismo, de formas ainda não muito conhecidas de reestruturar as bases da administração pública, no esforço de “africanização” que, em maior ou menor grau, ocorre em qualquer parte do continente negro. Que as Africas são muitas, mas todas caminham para uma unidade.

            Era uma época propiciadora de muitas “sagradas esperanças”, em que os negros de todo o mundo, falando a língua do colonizador,  chamassem-se Agostinho Neto, Abdias do Nascimento, Frantz Fanon ou Thiongo wa Ngugi, subscreveriam o ditame de Sécou Touré:

            Como cada um de nós traz em si uma parte de educação saída do regime colonial, e por isso mesmo um pouco de “complexo” herdado desse regime, devemos impor-nos a nossa própria e completa reabilitação, isto é, que cada um de nós regresse às fontes culturais e morais de África, que se reintegre na sua própria consciência e que se reconverta, em pensamentos e acções, aos valores, às condições e aos interesses de África.

            Mas,  o tempora! o mores!,  a sede e/ou a necessidade de  poder, que começaram para assegurar, por razões de  sobrevivência,  as conquistas das terras ricas de flora e fauna, dividiriam os povos entre conquistadores e conquistados, mostrando, afinal, que conforme a sua força e representação étnica, homo homini lúpus,  em vez de homo sum, humani nihil a me alienum puto. Ou entre os kimbundus, kala nguvulu ni utuminu uê, kala nvula ni maloua mê, que o cronista   angolano Óscar Ribas traduziu por “cada governador com o seu administrar, cada chuvada com os seus lamaçais”. Hoje, se fosse vivo na sua pátria (morreu triste em Portugal), aquele  sábio mestiço, que exaltara a independência da sua terra-mãe, não deixaria de reflectir sobre os caminhos ínvios perspectivados pelo escritor guerrilheiro  Pepetela nos seus perturbadores romances Mayombe, de 1980, e A Geração da Utopia, de 1992.
            Era, pois, preciso escapar aos “lamaçais” endógenos e exógenos e retomar o “caminho”  do regressso à “terra sem males”,  no dizer de Eliane falando da “ancestralidade histórica” dos Guaranis, “uma terra que lhes permita viver com dignidade, sem interferências paternalistas, enfim, um paraíso mítico de sua ascendência.”  O líder guineense de origem cabo-verdiana, Amílcar Cabral,  sendo mais específico, corroborava:

            A nossa resistência cultural consiste no seguinte: enquanto liquidamos a cultura colonial e os aspectos negativos da nossa própria cultura no nosso espírito, no nosso meio, temos que criar uma cultura nova, baseada nas nossas tradições também, mas respeitando tudo quanto o mundo tem hoje de conquista para servir o homem.                      

            Por sua vez, Agostinho Neto, nacionalista pragmático, reiterava, quando Angola acabava de conquistar a independência:

            Nós somos uma encruzilhada de civilizações, ambientes culturais, e não podemos fugir a isso de maneira nenhuma, mas da mesma maneira que nós pretendemos manter a nossa personalidade política, também é preciso que nós mantenhamos a nossa personalidade cultural.    

            Tratava-se, simplesmente, de defender as identidades nacionais, preservando a “ancestralidade histórica”. Todavia,  como observava em 1986 o então jovem ensaísta angolano Luís Kandjimbo, em Apuros de Vigília,

            É forçoso considerar que existindo nos nossos países várias ex-nações, existem concomitantemente vários níveis de desenvolvimento sócio-económico e cultural. Dito de outro modo: existem concomitantemente diversos modos de produção social. A identidade nacional terá a sua verdadeira dimensão quando às solicitações da humanidade, em circunstâncias necessárias, a nação responder através da sua harmónica unidade. É dizer através de um desenvolvimento económico, social, cultural, político, jurídico e ideológico de unidade.
            (…) Se as resistências dos povos africanos ao colonialismo, durante todo o processo colonizador para a recuperação de uma personalidade anteriormente existente, são uma  premissa para o processo prospectivo de unidade nacional dos povos africanos, a verdade é que só com o surgimento dos movimentos de libertação nacional e nas condições do desenvolvimento histórico mundial a identidade se torna um projecto real e efectivo.

            Todavia,  os movimentos de libertação, civis ou militares,  tiveram de  partir para uma construção nacional prefigurada  pelos colonialistas, que mapearam num determinado espaço geográfico uma artificial entidade  territorial,   sem atender à identidade  dos autóctones. Na verdade,  a maioria dos países  reconhecidos como Estados-Nações foram “construções” arbitrárias dos conquistadores que os invadiram.  
             Há dois séculos, no país chamado Brasil, ainda se contavam duas centenas de etnias falando mais de cem línguas e dialectos.. Povos que, não reconhecendo as fronteiras administrativas mapeadas pelo invasor estrangeiro,  se disseminavam por paízes vizinhos. Em Angola,  a situação, tomada por cerca de metade da brasileira, era similar: as “nações” identificavam-se pelo espaço territorial em que grupos da mesma língua, tradições e práticas exerciam, pacificanente ou em transe de guerras de   ocupação,  o “direito” de sobrevivência em acordo com a sua natureza. O suposto resto do Mundo envolvente, a sua cosmogonia, cabia bem na epígrafe pessoana escolhida por Eliane Potiguara: Da minha aldeia vejo quanto da terra se pode ver no Universo.
            Só que a “aldeia” da Poeta e do seu povo originário  foi submersa pelos avatares  de uma história que, vindo de trás, era fatalmente dialéctica, restando numa “sagrada esperança” de salvação da alma:

            Ah! Já não tenho a minha aldeia/ Minha aldeia é meu Coração ardente! É a casa dos meus antepassados! E do topo dela eu vejo o mundo! Com o olhar mais solidário que nunca! Onde eu possa jorrar! Milhares de luzes! Que brotarão mentes! Despossuídas de racismo e preconceito.

            Lembro-me de que nesses avatares também mingua o espaço para as utopias. Que pensar se um poeta angolano, de raiz  bochímane (de  que resta, hoje, um povo que se conta por  escassos milhares nos territórios semidesérticos de Angola e do Sudoeste namibiano) exclamasse num grito de desesperança:

            Os nossos irmãos-vizinhos bantus pensam-nos como não-gente! Porque temos diferenças anatómicas na cor da pele e no tamanho! Porque falamos numa língua de cliques,  vivemos de caça, pastorícia  e  raízes e enganamos a fome e restauramos energias comendo um certo cacto do deserto (hudya)!  
             
            Defrontando as inclemências ou indiferenças dos vizinhos-homens e as perturbações climáticas por estes  também provocadas, em razão de outro “direito” de sobrevivência,  dir-se-á que a dialética se consome na salvação da alma. Di-lo a ameríndia Eliane Potiguara e o português-angolano Ruy Duarte de Carvalho,  estudioso do ethos do povo herero, - que subsiste, ainda autonomamente, no sul de Angola - ao qual consagrou a sua vasta obra de escritor-antropólogo, até ser sepultado, depois de correr o mundo, conforme a sua vontade, no deserto de Moçâmedes:.                        

            Ainda quererás saber qual é a minha posição no meio de tudo isto? Campanhas, de qualquer forma, não. Estou pronto a esclarecer no que puder mas não me peçam nem que ajude a domesticá-los nem que pugne pela causa da preservação dos seus modelos e sistemas, que de qualquer maneira não seria a deles.(…) Estou a investir-me numa teoria pessoal dos horizontes onde cabe tudo. (…) Não é só a salvação dos Kuvale que está em causa, é a minha também…

            Viajante por natureza assumida (Carvalho saíra de Portugal, para Moçâmedes, com treze anos de idade), entre os hereros aprendeu vivendo o pleno sentido da máxima de Terêncio: “Sou homem e nada do que é humano considero estranho a mim.” 
                        Aqui me dei, aqui me fiz
                        Desfiz, refiz amores.
                        Aqui me embebedei e vomitei o espanto.

                        Daqui abalo hoje, parido para o nada
                        apalpo a água
                        afago um bicho                      
                        ordeno qualquer coisa
                        e vou.

Sempre indo, ele  faria coro, certamente,  com o grande poeta espanhol  António Machado - “Caminante, no hay camino,/se hace camino al andar”-  e o poeta colombiano Manuel Vejia Vallejo: “Si camino siempre hacia adelante/Un dia llegaré/Al punto de partida./Asi he sabido que todo/camino del hombre/ es camino de regresso.”
Esta será porventura a mensagem do livro de Eliane, a caminhante. 

                                                                                       LEONEL COSME
                                                                                        Escritor - Ensaísta Português
  

  

                                   BIBLIOGRAFIA BÁSICA

CARVALHO, Ruy Duarte de -  Vou lá visitar pastores, Edições Cotovia Lda., Lisboa, 1999.
COSME, Leonel  - Agostinho Neto e o seu tempo, Campo das Letras Editores, Porto, 2004.                       Muitas são as Africas, Edições Novo Imbondeiro, Lisboa, 2006.
KANDJIMBO, Luís – Apuros de Vigília, União dos Escritores Angolanos, Luanda, 1988.
NETO, Agostinho – Sagrada Esperança, Sá da Costa, Lisboa, 1974.
                                 A Renúncia Impossível, INALD, Luanda, 1982.
NOGUEIRA, A.F. – A Raça Negra, Lisboa, 1880.
OLINTO, Antônio – Brasileiros na África, 2ªed.., GRD, São Paulo, 1980.
POTIGUARA, Eliane – Metade cara, metade máscara, Global Editora, São Paulo, 2004.                        
     

 

***************************************

As histórias dos índios, por eles mesmos

 
Programa nacional de bibliotecas impulsiona (ainda mais) as vendas de livros escritos por indígenas
Ameaçada por grilagem de terras, desmatamento, garimpo, obras de governos e minada pela discriminação, a cultura dos  povos indígenas brasileiros resiste (agora também) em forma de literatura e conquistando espaço no mercado editorial. Há uma boa safra de escritores indígenas dedicados à literatura infanto-juvenil e publicados por diversas editoras, inclusive grandes como Martins Fontes, Paulinas e FTD. O ano de 2011 deve  terminar com pelo menos 19 títulos novos no mercado, entre os quais A cura da terra, de Eliane Potiguara, pela Global Editora, e Mondagará, de Rony Wasiry Guará, pela Saraiva.
Esse interesse se deve, em parte,  à Lei  11.645, aprovada em 2008, que  criou a obrigatoriedade de se tratar a temática indígena  e afro-brasileira no currículo escolar brasileiro. Mas também é possível que nomes como Daniel Munduruku, Graça Graúna, Yaguarê Yamã e  Olívio Jekupé estejam  ganhando as prateleiras das livrarias do país graças a suas vendagens, turbinadas recentemente pelas compras governamentais, via PNBE (Programa Nacional Biblioteca da Escola).
A Global, com 11 livros de autores indígenas em seu catálogo, publicou o primeiro O Povo Pataxó e Suas Histórias em 1999 e depois não parou mais. Segundo seu editor, Luis Alves Junior, esses livros já vendiam bem antes da lei, tanto que alguns deles já haviam ganhado reimpressões – o livro Você se lembra, pai? de Daniel Munduruku, publicado em 2003, é um deles.
A lei chegou anos depois da  articulação de escritores indígenas em encontros nacionais, liderados pelo pioneiro Munduruku, e deflagrada há oito anos com grande apoio institucional da Fundação Nacional do Livro Infanto-Juvenil. “Nós não endossamos o trabalho destes autores porque são indígenas, mas porque estão fazendo uma literatura de qualidade para as crianças”, diz Beth Serra, presidenta da Fundação.
Doutor em Educação e autor de 43 livros, a maioria dos quais infanto-juvenis, Munduruku, de 47 anos,  editou seu primeiro  livro, Histórias de Índio, em 1996, pela Companhia das Letrinhas, depois de bater em várias portas. Hoje já tem 20 edições.“Lançar livro para criança da cidade com ótica indígena era difícil. Na época, era sempre antropólogo, escritor, historiador que escrevia sobre o índio, que não tinha voz nem vez no mercado editorial”.
De lá para cá, Munduruku já abocanhou vários prêmios nacionais e internacionais, com o “Jabuti” de 2004  pela obra Coisas de índio, da Callis Editora.
Natural de Belém (PA) mas vivendo em Lorena (SP) há mais de 20 anos, Munduruku é formado em Filosofia, com Licenciatura em História e Psicologia. Ele chegou à literatura infanto-juvenil através de suas experiências como professor e educador social de rua da Pastoral do Menor em São Paulo, onde acabava contando as histórias que escutava quando vivia entre seus parentes aldeados.
Para ele, a literatura funciona como “maracá”, o chocalho que é utilizado como instrumento de cura pelos pajés. Acredita-se que dentro dos maracás há uma voz sagrada que é a que os pajés utilizam para conversar com os espíritos que fazem a cura das pessoas que os procuram. A literatura deles teria este componente. “É nosso maracá  para a sociedade brasileira”.  Para ele, esta  geração de escritores indígenas  escreve como uma forma de “curar o Brasil”, ajudando a sociedade “a conhecer sua história e não perder de vista a contribuição que os indígenas oferecem”.
Outro “parente” de Munduruku neste movimento que usa a literatura como “arma de defesa do povo indígena” é  Olívio Jekupé, de 45 anos,que teve que abandonar o curso de Filosofia por dificuldades econômicas. Publicando desde 2001, Jekupe é autor de um total de 11 livros, o mais recente “Tekoa – conhecendo uma aldeia indígena”, pela Editora Global. Jekupé, que vive na aldeia guarani  Krucutu, em São Paulo,  prefere denominar sua literatura de “nativa” e não de “indígena”  para diferenciá-la da literatura que os outros escrevem tendo o índio como objeto. “Ela sai de dentro da gente, do que conhecemos, pois escrever sobre índio não é só escrever, é preciso conhecer e viver essa cultura”.
Relatos orais das velhas gerações indígenas
Para Munduruku foi um acaso eles terem caído no gosto do público infantil. Acabou dando certo. “Não é que a gente escrevesse para crianças, é pelo teor das histórias que a gente conta. A gente recebia essas histórias de forma oral. Caía na nossa memória. E o nosso pessoal foi começando a aprender a escrever”.
Muito do que esta geração de autores indígenas faz é verter para o papel as lendas e histórias dos povos indígenas, repletas de conteúdos éticos e morais, que eram transmitidas oralmente para suas crianças há séculos, com clara função educativa.
Por outro lado, a literatura infanto-juvenil também é mais acessível a eles por serem livros menores e relativamente mais fáceis de escrever. Afinal, esta turma só recentemente está sendo escolarizada  com a preocupação em resguardar sua identidade étnica, ou seja, “sem desprezar sua identidade, desistir de sua história e desacreditar seus sábios”, observa Munduruku.